O processo das biografias, por Ruy Castro e Lira Neto

Por Anderson Olivieri

Para muitos leitores, as biografias fascinam não só por proporcionar uma leitura prazerosa, mas também pelo complexo e intrigante processo de preparação que há por trás desse gênero. Quando li Estrela Solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, aos 15 anos, impressionei-me com a quantidade de informações sobre o Anjo das Pernas Tortas levantadas pelo autor. Ruy Castro sabia tudo sobre seu biografado: da marca de cachaça mais consumida ao número de jogos e gols feitos por Garrincha.

Conforme avançava na leitura, fascinado com a capacidade do autor de garimpar informações, perguntava-me: “Como Ruy Castro descobriu isso?”, “Quanto tempo demorou para apurar tudo?”, “Será quantas pessoas ele ouviu para escrever este alentado volume?”, “Por quantos arquivos passou e quantos papéis revirou nesse processo?”, “Será que a família do Garrincha autorizou a publicação?”, “Como o Ruy custeou toda essa pesquisa?”.

Estava tão abismado com o resultado quanto com o processo. Isso persiste. Ainda leio biografias com esse duplo encantamento. Porém, após já ter produzido biografias – como, por último, Predestinado: A vida do craque Müller (Vitalia, 2022) – e participado de diversos cursos sobre o tema – com autoridades do assunto, como Josélia Aguiar, Lira Neto, Mário Magalhães e Ruy Castro – isso já se dá sem a inexperiência completa de outrora. Ainda me encanto pelo processo porque ele é, por essência, apaixonante.

E a boa notícia que chega a nós, amantes de biografias e seus processos, é que Ruy Castro e Lira Neto acabam de nos oferecer um presente especial de fim de ano: os livros A vida por escrito: ciência e arte da biografia, assinado pelo biógrafo de Carmem Miranda, Nélson Rodrigues e Garrincha, e A arte da biografia: como escrever histórias de vida, do jornalista cearense que já escarafunchou as vidas de Maysa, Getúlio Vargas, Castello Branco e padre Cícero.

São obras que explicam como as boas biografias são feitas e ensinam os passos dessa preparação. O melhor de tudo: Ruy Castro e Lira Neto não adotam a linguagem dos manuais técnicos ou das teses acadêmicas para abordar o assunto, o que seria um desastre. A dupla integrante do alto clero do jornalismo e do biografismo brasileiros aplica em suas mais recentes obras o mesmo tom leve e agradável que os consagrou na literatura.

Em A vida por escrito: ciência e arte da biografia, de Ruy Castro, e A arte da biografia: como escrever histórias de vida, do Lira Neto, aprende-se tudo sobre o universo das biografias conhecendo as experiências deles, as situações reais que viveram em seus trabalhos. Para esclarecer a importância de se procurar obstinadamente as informações, por exemplo, Ruy Castro conta sua busca incansável pela marca da escarradeira que havia na redação do jornal do pai de Nélson Rodrigues, seu primeiro biografado. Depois de muito esforço e suor, a informação foi encontrada. No livro, ao justificar por que não desistira da caçada, sendo a escarradeira pouco relevante para a história, Ruy explica que abrir mão de uma informação desejada significa criar precedente que deixa o biógrafo confortável para novas desistências ao longo da apuração, o que seria péssimo para o resultado.

Lira Neto, por sua vez, ao defender que todo biógrafo tenha “senso de detetive, olhar de antropólogo e espírito de arqueólogo”, narra sua preparação, por exemplo, para escrever sobre a cidade de São Borja na biografia de Getúlio Vargas: “… precisei ir até lá para segurar, na palma da mão, um punhado da terra avermelhada da estância onde morou o ex-presidente. Desfiz o torrão entre os dedos, senti-lhe o cheiro, conferi-lhe a cor e a consistência.”

A única parte mais teorética dos livros de Ruy Castro e, principalmente, de Lira Neto é o começo, seus primeiros capítulos, quando eles passeiam por conceitos históricos e primordiais das biografias, como o da hagiografia. De resto, o que o leitor encontra são deliciosas exposições de situações vividas pelos dois autores na produção biográfica, aspectos que vão desde a escolha do biografado, passando pelas fases de apuração das informações e escrita da biografia, até a edição do livro.

A vida por escrito: ciência e arte da biografia (Companhia das Letras, 2022) e A arte da biografia: como escrever histórias de vida (Companhia das Letras, 2022) são tão bons que parece até que você está lendo Carmem ou um dos volumes de Getúlio, quando, na verdade, são eles, Ruy e Lira, ensinando algo tão aprazível nas biografias quanto o resultado: o processo.

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